Igualdade x Eficiência – O Grande Conflito

Exmo. Sr. Prof. Dr. José Carlos Figueiredo Ferraz.
Digníssimo Patrono da turma que ora cola grau.
Exmo. Sr. Diretor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo.
Prezados colegas.
Meus senhores e minhas senhoras.

Meus caros formandos.

Permitam-me dirigir minhas primeiras palavras a vossos pais.

Colocado pelo destino no caminho de vossos filhos, vejo-me agora lançado à primeira cena de uma festa que, se de um lado representa para eles o início de uma nova fase, para vós é a coroação de esforços alimentados acima de tudo por um sentido de missão. A cerimônia, assim, é vossa de pleno direito e pela intromissão indevida peço desculpas. Desculpo-me, mais, pois provavelmente não serei tão breve quanto certamente desejaríeis

Caros graduandos: ao convidar-me para vos falar por ocasião desta celebração, quisestes honrar o corpo de professores dessa casa e, em especial, aqueles que vos conduziram pelos caminhos árduos dos métodos quantitativos, através da aridez e rigor da matemática aplicada. Aprendemos, juntos, a tratar formalmente os problemas criados pela incerteza. Hoje, livres dos ditames curriculares, desejo falar-vos sobre outro tema. Versarei sobre Bens e Direitos. Ao fazê-lo, basear-me-ei nas lições de Arthur M. Okun.

O Domínio dos Direitos

Um grande número de direitos – como os chamarei daqui pra frente – são distribuídos igualmente a todos cidadãos de nossa sociedade.

O direito a igual proteção por parte da Justiça, de livre expressão, de livre associação religiosa, de votar, de casar e procriar, de ser livre no sentido de não ser feito escravo, de receber proteção por parte da polícia e de poder frequentar escolas públicas, e até o de separar-se da sociedade onde se vive através da emigração, são todos direitos que nossa sociedade acredita que devam ser atribuídos igualmente a todos cidadãos. 

Igualmente distribuímos, de maneira uniforme, obrigações ou o que poderíamos chamar – direitos negativos; por exemplo, o de obedecer à lei e o de servir como jurado, para citar apenas alguns.

Cinco características distinguem os direitos dos bens econômicos. A primeira é a de que os direitos são adquiridos e exercidos sem dispêndio monetário. Como não custam nada, em geral não se economiza no seu uso. Se a expressão do ponto-de-vista político custasse um preço, certamente pensaríamos mais antes de falar e com isso é provável que o nível do debate melhorasse significativamente.

A segunda característica é a de que, como os direitos são distribuídos a todos, não seguem o princípio das vantagens comparativas, princípio este que manda as pessoas se especializarem naquilo que desempenham melhor. Em caso de guerra, o alistamento militar universal acaba por incorporar cidadãos que, se excelentes para vida civil, são péssimos como soldados, diminuindo desta forma a eficiência da força armada. Mas é assim que nossa sociedade deseja formar tropas.

Uma terceira característica consiste no fato de que os direitos não são distribuídos como incentivos ou prêmio. Não se dá o direito a votos extras, a um cidadão que se distingue por um desempenho notável e, apenas no caso de culpa criminal, quando se suspende o direito ao voto, é que a sociedade estabelece alguma forma de retribuição no domínio dos direitos.

A quarta característica é a de que os direitos ou obrigações invadem o campo da liberdade individual. O serviço militar e o exercício do direito ao voto não são facultativos.

Finalmente e talvez mais característico do que os anteriores: os direitos não podem ser negociados, não podem ser comprados ou vendidos e isto, sem dúvida, reduz o bem estar coletivo. Como bem observou o economista James Tobin, – “qualquer aluno do 2º ano pode provar que a livre compra e venda de votos aumentaria o nível de satisfação tanto do comprador como do vendedor”. É preciso apenas um pouco de imaginação para enumerarem muitos outros mercados, caso se pudesse transacionar com os direitos individuais.

Em suma, o domínio dos direitos viola, inúmeras vezes, o domínio da eficiência econômica. Se pudéssemos dar preço aos direitos, negociá-los livremente, usá-los como incentivo no caso de esforços produtivos para a sociedade, fazer com que dirigissem escolhas no sentido da especialização, certamente aumentaríamos a produção de bens para a mesma quantidade de insumos. Mas não. Nossa sociedade prefere pagar com uma certa ineficiência, mas ter os direitos igualmente distribuídos.

Devo acrescentar aqui que, no campo da implementação, muitas vezes ficamos aquém de uma distribuição universal e uniforme de bens. Em particular, podemos lembrar de imediato a igualdade no direito de polícia e a igualdade perante a lei.

Mas o fato de existirem imperfeições, que provocam nossa revolta e nos causam repulsa, não invalida o argumento de que procuramos, em tese, a igualdade à custa da eficiência econômica.

O Domínio do Mercado

Ao lado de uma distribuição universal e uniforme de direitos, nossa sociedade adota uma economia de mercado que gera enormes disparidades na distribuição de rendas. Ao lado de suntuosos apartamentos no Jardim Europa, proliferam favelas à margem do Rio Pinheiros. Nas palavras do Prefeito Olavo Setúbal, coexistem aqui a Suíça e Biafra.

Quando especialistas e leigos discutem a desigualdade criada pela economia de mercado, três argumentos são levantados com frequência, em defesa do regime de mercado:

1) A relação entre economia de mercado e a liberdade; 2) a justiça que existe numa renda desigual como prêmio por uma produção desigual e 3) o incentivo das rendas desiguais para o aumento da eficiência. Examinemo-los, um a um:

A relação entre economia de mercado e a liberdade

Nossa organização social protege o direito dos cidadãos de venderem os produtos de seu trabalho e capital e disporem de sua renda na compra de serviços e bens de terceiros. A escolha do trabalho a realizar e a liberdade na aquisição de bens são elementos essenciais da liberdade individual. Para muitos, estes se constituem em direitos iguais e universais, que todos têm, de receber rendas desiguais.

No entanto, esta liberdade traz consigo a necessidade de definir a propriedade privada. E o direito à posse de certos bens limita a liberdade de outros de usá-los. Embora os conceitos de propriedade privada e liberdade individual pudessem estar associados à época de uma economia basicamente rural, quando a propriedade podia ser vista como extensão de seu proprietário, tal não ocorre hoje numa sociedade industrial, em que a propriedade é representada basicamente por títulos, ações e debêntures.

Uma outra linha de raciocínio, que me parece mais válida, é de que a economia de mercado protege os direitos políticos da intromissão do Estado. A propriedade privada e seu processo decisório limitam o poder do Governo e a sua possibilidade de invadir o domínio dos direitos privados.

Aqui é preciso lembrar que, no entanto, se de um lado temos os governos escandinavos com enorme poder econômico, sem comprometer as instituições democráticas, de outro tivemos governos fascistas oprimindo seus oponentes políticos, ao mesmo tempo em que mantinham uma economia de livre empresa.

A justiça que existe numa recompensa desigual como prêmio pela produção desigual

Alguns conservadores argumentam que, se a economia de mercado funcionar perfeitamente, cada um recebe na medida do que contribui e as diferenças de renda resultantes são, não apenas aceitáveis, mas justas. Jogos justos acabam por ter vencedores e vencidos e, como sabemos, feitas as hipóteses necessárias, um mercado competitivo pagará a trabalhadores e capitalistas o valor de sua contribuição para o produto final.

Embora hoje poucos defendam acirradamente a distribuição de renda, resultante da produtividade marginal, como sendo necessariamente uma distribuição justa, permanece o apelo ético de que a renda deveria ser baseada na contribuição para o produto final.

Na realidade a remuneração recebida não é basicamente justa. Sem nos determos nas situações de oligopólio ou monopsônio e sem pormenorizarmos as críticas de Galbraith, no sentido de que os salários dos operários são fixados por dirigentes cujos objetivos e interesses pessoais nem sempre concordam com a maximização da rentabilidade de sua empresa, podemos argumentar que a contribuição para o produto final dos serviços que podemos vender depende de quatro elementos:

1) As habilidades e bens que adquirimos durante a nossa vida.

Isto significa que o que vendemos hoje reflete nossa história, inclusive o fato de que fomos melhor alimentados ou melhor educados. Assim alguns dos participantes começam o jogo em desvantagem em relação a outros.

2) As habilidades naturais com as quais nascemos. 

Os que não concordam com a objeção anterior, apontam o fato de que os participantes nascem com habilidades diferentes e que estas são, na realidade, diferenças justas. Argumentam que uma competição esportiva não pára por que alguém tem “genes” superdotados. 

Tenho para mim que a sociedade deve tentar atenuar, e não exagerar, as deficiências do universo. Na situação descrita, a remuneração justa seria na proporção inversa dos talentos com que nascemos. Um exemplo de que não somos tão avessos ao critério que acabo de expor é o esforço e o carinho que dedicamos à educação e felicidade de crianças excepcionais.

3) O esforço que estamos dispostos a dispender. Em geral concordamos todos em que diferenças de renda associadas a diferenças de esforços são justas. Mas, mesmo neste caso, é preciso não esquecer daqueles que não trabalham: as crianças, os velhos e os estudantes em bolsa de estudo.

4) A oferta e demanda dos serviços semelhantes. 
O valor de nosso produto marginal não depende apenas de nossa habilidade e do nosso esforço. Pode ser alterado em grande parte pela oferta de habilidades semelhantes à nossa. Seria justo que nossa renda caísse só porque há excesso de Professores da Teoria da Decisão? É eticamente desejável que a renda oscile com a variação da tecnologia e dos gostos?

Em verdade, se a recompensa fosse dada inteiramente à contribuição marginal de cada um, aqueles que contribuem com novas invenções deveriam receber o benefício total de sua contribuição. O fato de que esses benefícios são, na realidade, distribuídos gradativamente a outros membros da sociedade é o mérito da economia de mercado na sua versão prática.

O incentivo das rendas desiguais para o aumento da eficiência

Uma terceira linha de argumentação, bastante convincente, nos diz que a desigualdade de renda é o preço que pagamos pela eficiência do sistema.

Economias centralizadas têm demonstrado que são capazes de gerar crescimentos bruscos no PNB. Estes resultados devem, no entanto, ser descontados em dois pontos: primeiro, surgem ineficiências que não afetam o PNB mensurado; e segundo, a produção do sistema segue a preferência dos burocratas e não a dos consumidores.

O problema central na alocação eficiente de recursos é que a procura e geração de novos conhecimentos e informações pode ser extremamente cara, enquanto a distribuição e disseminação são tipicamente fáceis. Assim, na ausência de leis que protejam os direitos de autoria, haverá pouco incentivo para se investir na produção de novos conhecimentos.

O sistema em que procuramos viver hoje parece ser um sistema misto. Em certos tipos de pesquisa básica, os frutos do conhecimento são considerados tão importantes que seu desenvolvimento é financiado por órgãos estatais e os resultados são colocados à disposição de todos. Para o desenvolvimento de outros tipos de conhecimento permitimos ao inovador, um certo poder de monopólio sobre sua criação. O sistema de preços resultante obviamente ineficiente. Algo que tem pouco custo para o produtor é racionado de maneira restritiva, não podendo chegar a consumidores para os quais tem alto valor.

O sistema atual não é eficiente nem estético, mas assim mesmo tenho dificuldade em visualizar uma revisão fundamental que represente melhoria considerável.

Tenho muitas dúvidas sobre a justiça das rendas determinadas por uma economia de mercado. Por outro lado não tenho soluções fáceis. Para mim, liberdade e desigualdade de rendas nada têm em comum e renda igual à produtividade não tem apelo ético. Desigualdade na distribuição de rendas parece-me o preço a pagar como compensação por uma eficiência maior.

Pessoalmente, prefiro igualdade na distribuição de renda, se considerarmos o lazer como uma forma de rendas, a menos igualdade. Desprezando os custos e as consequências, prefiro distribuição de igual renda, à semelhança da distribuição igual de direitos.

Caros formandos, defrontai-vos com o dilema: mais igualdade ou maior eficiência.

Não é este o único dilema com que ireis conviver-vos. Assistimos todos, nos dias de hoje, ao conflito: maior crescimento ou melhor equilíbrio na balança de pagamentos; maior índice de emprego ou menor inflação. Nos dizeres de um velho provérbio: “não se pode ter o bolo e comê-lo ao mesmo tempo”. Mas, nas grandes palavras de Arthur Okun, o conflito entre maior igualdade e maior eficiência é o GRANDE CONFLITO.

Decidi discutir este tópico convosco, pois acredito que, nos anos vindouros, desempenhareis papel significativo na escolha do caminho pelo qual nossa sociedade decidirá sua escolha. Esta não será fácil. A opção não será entre o Branco e o Negro, mas entre vários tons de cinzento. Tenho certeza, no entanto, de que tereis pleno sucesso.

Para isto, contais com o rigor científico e a paixão da juventude. Rigor científico não vos falta, caso contrário não estaríeis aqui agora; a paixão, que é própria da juventude, não a percais ao longo dos anos.

Lembro-me bem de como, há cerca de vinte anos, encontrava-me eu no mesmo estado de espírito em que vos encontrais agora. Desejava transformar o mundo. Duas décadas mais tarde, gostaria de acreditar que, se muito não consegui, se há muito ainda por fazer, pelo menos o mundo não conseguiu transformar-me e que a mesma paixão ainda existe.

Vosso convite deu-me esta certeza. E por isso sou-vos imensamente grato. 

Deus vos acompanhe.

NOTAS:

Discurso pronunciado em 31/08/1976, na qualidade de paraninfo da XXXI turma de formandos da E. A. E. S. P. da Fundação Getúlio Vargas. O tema abordado segue de perto os ensinamentos de Arthur M. Okun em “Equality and Efficiency – The Big Tradeoff”, The Brookings Institution (1975). 

Michael Paul Zeitlin, Professor Adjunto da E. A. E. S. P. da fundação Getúlio Vargas; Engenheiro Civil E. P. U. S. P. (1959); Pós-graduado em Adm. De Empresas – E. A. E. S. P. (1968); M. Sc. (1973), Ph. D. (1975) – Stanford University.