Octogenário

Estou lendo a História da Segunda Guerra Mundial de Winston Churchill, mas não consigo me concentrar sobre a invasão da Itália; meus problemas familiares insistem em tomar conta de meu cérebro. Levanto os olhos e vejo meu copo com cuba libre, tomo um gole. Estou usando a mesa de madeira com 4 cadeiras confortáveis que ganhamos de Ana e suas filhas num dos últimos Natais. Feitas em madeira rústica, são mais confortáveis do que a mesa longa com dois longos bancos e que é muito útil nos dias de churrasco e nas noites com rodadas de pizza. O chão de pedra mineira está muito em ordem apesar de seus quase 40 anos de implantação; fora do pedaço que é coberto por um telhado de quatro águas, o piso está firme embora mais escuro mostrando o efeito intermitente de sol e chuva há tanto tempo. Levanto-me e vou ligar a sauna que está a menos de 3 metros das minhas costas. Tomo outro gole, ainda de pé, olho o gramado que está lindo. Agora com o início de Abril até chegarmos a Outubro vai chover muito menos e a grama obediente vai crescer bem mais devagar. Vejo a piscina, para mim um luxo desde o tempo que era interno cursando o Primário. A água está azulzinha transparente, da cor de águas-marinhas. Ficava admirado que houvesse colegas que tinham piscina em suas casas. Foi só quando aluno da POLI fui aceito no Pinheiros como sócio atleta para integrar a equipe de atletismo é que comecei a frequentar um clube onde podia usar a piscina. Sorri e me sentei pensando que eu estava de fato no Paraíso, não havia do que me queixar tinha é que ir em frente como sempre fizera. No momento tenho que escrever minha colaboração para o curso de Redação. Reclamar não é o caminho.

Decido tentar seguir os passos de Luciana1, com muito respeito. Se ela medita sobre quem é eu devo pensar sobre o que será ser um octogenário e entender o que está acontecendo comigo. Sigo também Margareth1 que examina seus sentidos e se diz desorientada. Pergunto-me se sei em que direção devo encaminhar meus esforços. Parto para este exercício certo e reconciliado com o fato de que minha narrativa não terá a riqueza de vocabulário de Karenina1, esteja ela nos contando sobre sua família – adoro estas histórias – ou nos descrevendo um reino mágico e fantástico. Quem sabe consigo contar minha história com a simplicidade e concisão com que Lila1 nos conta sobre si própria.

A notícia de que os filhos desejam encerrar a sociedade que criamos e dividir o patrimônio entre as famílias teve um efeito devastador sobre mim e sobre Neuza. 

– “Esta história de termos chegado ao ponto de discutir uma divisão para então nos separarmos acabou comigo, diz André”!

– “André você não imagina o que fez com Neuza e comigo”.

– “Não preciso imaginar, é só olhar para o rosto de vocês para entender o que se passa”.

Três dias depois deste diálogo, tendo conversado com Ana como devemos proceder de forma a quando acabássemos não termos vergonha de nada que fizemos, recomendei que ela escolhesse profissionais como contador, advogado, de sua confiança pessoal. Eventualmente deveríamos pensar num mediador se as negociações ficassem num impasse. Ela me contou que o contador que faz seu Imposto de Renda, e que durante anos foi contador de nossas empresas, recomendou que a divisão fosse feita em três partes cada uma das quais abrigaria seus pais como usufrutuários uma vez que já havíamos passado toda a propriedade para os filhos conservando um usufruto de 25% sobre o que fosse retirado da empresa. Ana demonstra alguma preocupação, ela como André concordaram em dividir em duas partes – ela ficaria junto com os pais e André com os sobrinhos que claramente nos disseram que preferem o tio e não o avô.

– “Ana, ouça o que vou te dizer. E sou eu que estou falando e não sua mãe. Temos uma graça de Deus em nossas mãos. Que bom que vamos fazer a divisão entre vocês enquanto estamos vivos. Você já pensou em como seria mais difícil vocês dividirem sem a nossa participação?” Ana concordou, deu-me um beijo de filha e se foi.

Tomo outro gole de meu cuba libre e começo a pensar no meu passado profissional. Quase toda vida com 2 empregos: o magistério e alguma consultoria que ajudasse no leite das crianças. Tivemos vida confortável, mas austera. Quando Neuza herdou todos os bens fomos acertando os documentos. Um trabalhão – cartórios, prefeituras, primos distantes que solicitavam assinaturas e nós pedíamos o mesmo. Claro que tudo isto custa taxas, impostos atrasados, em alguns casos advogados. Um dia quando tudo parecia chegar perto de um final disse a Neuza: “Vou acertar todas as propriedades e aí vou morrer”. Ao que ela respondeu de bate pronto: “Escolhe uma pequena sem muito valor e deixa sem acertar”. Quero partilhar com o meu leitor um exercício que fazia anualmente e que ao lado de me contentar servia às vezes para justificar uma depressão. Ao fazer meu Imposto de Renda eu somava o que tinha ganho com meu trabalho e quanto valiam os imóveis que Neuza havia herdado e estes claramente tinham subido mais, muito mais algumas vezes, do que o produto do meu trabalho. Para me consolar eu pensava que os motivos fossem a regularização da documentação, os impostos pagos, as melhorias que introduzíramos, as construções que fizemos, mas não conseguia me satisfazer. 

O meu defeito mais grave é meu orgulho. Malandro, escapa ao meu controle, aproveita minha distração e bum! Lá está ele. Quando penso no livro que sempre quis escrever, pensava logo num título. “De apátrida a Secretário de Estado”. Logo depois descartava; metade da população não vai saber o que é ser apátrida e a má qualidade de alguns Secretários de Estado não os recomenda como ícones a serem emulados. Uma versão que me pareceu mais simpática é: “De Itobi a Washington, DC.” Itobi é um pequeno município paulista entre Casa Branca e S. José do Rio Pardo e seus habitantes vivem em função de S. José do Rio Pardo, lá trabalham, almoçam em casa, voltam a tarde; a farmácia para remédios mais raros é em São José. Fomos até lá num sábado, pois havia notícias de muita reclamação. Claro, os sábios tecnocratas entre os quais me incluo tiveram a coragem de colocar um pedágio entre Itobi e S. José. Ouvimos com atenção e resolvemos com humildade; em seguida fomos de helicóptero para S. Paulo, pois à noite viajamos para Washington D.C. onde no BID – Banco InterAmericano de Desenvolvimento discutiríamos os termos do contrato que o Estado estava disposto a assinar com os vencedores dos contratos de concessão. A aprovação do BID é importante não porque emprestam muito dinheiro, mas porque sua aprovação sinaliza aos bancos que consideram o projeto uma coisa séria e que “fica de pé”, na gíria do mercado. Discutimos durante 10 horas cada um de 2 dias seguidos e humildade foi o que menos usamos. Sabia eu, que representava o governador Mario Covas na negociação. Não me entendam mal, aproveitamos muitas sugestões construtivas dos técnicos do Banco, fomos duros, não burros (ou orgulhosos). Chegamos a um acordo que nos satisfez. Mas esta é uma história que desejo contar em outro local. Recentemente Gilson, meu professor, sugeriu depois de ouvir um meu desabafo o título “Apesar disto, rolou”. Muito mais encorajador. O livro em questão eu ainda não escrevi, mas já dei os primeiros passos. 

Neuza chega da Missa de Domingo e eu lhe digo que quero conversar sério. “Senta e, por favor, me ouça.” Ela o faz de bom grado, pois a cheira notícia boa. Exponho meu ponto de vista que foi a Divina Providencia quem decidiu que deveríamos dividir agora enquanto vivos e não deixar para eles se virarem do jeito que quiserem “quando não estivermos mais aqui”. Depois de algumas perguntas e respostas todas muito diretas e simples Neuza se levantou e tomando meu rosto em suas mãos me deu um (longo) beijo. Estamos os dois no Nirvana da chácara num domingo de sol.

Eliana Cardoso, economista e escritora, publicou neste fim de semana de abril de 2018, um artigo sobre envelhecimento – Meia-idade – como subtítulo a seguinte frase:” Estamos sempre no meio do caminho de nossas vidas, sob a perspectiva de quem considera o futuro e reflete sobre o passado”. O artigo é bom, mas não concordo com a palavra meio do caminho melhor seria dizer que se está entre o passado sobre o qual refletimos e o futuro que tentamos planejar. Entre várias joias que Eliana cita de filósofos gostei muito e compartilho está de Epícuro:” É irracional se preocupar com a morte enquanto se está vivo e, uma vez morto, você já não terá como se preocupar”. Lembrei-me de uma frase na blusa de uma senhora, elegante e bonita, que me chamou a atenção: “Não leve a vida muito a sério, não é permanente”. Simples e direto ao ponto.

Para entender melhor como me sinto, uma metáfora futebolística ajudará. 

Estamos no 2º Tempo do jogo, aos 20 minutos e estamos ganhando de 2 a 0. Temos controle de bola, não erramos passes e o estado físico embora reflita o esforço feito até agora é adequado para chegarmos ao término da partida. Cuidamos do físico evitando fazer o que era possível nos primeiros quinze minutos, mas que agora não é necessário. A mente está lúcida e se comunica com os companheiros, cada um com seu estilo, seu temperamento e seu estoque de problemas. Estamos atentos e não perdemos nossa capacidade de se indignar em face de injustiças e canalhices. É possível ver oportunidades sem correr grandes riscos, jogaremos mais 25 minutos, e se os oponentes bobearem, se distraírem, chegaremos a 3 a 0 ou até mais.

Escrito em 10/04/2018  07:28.

NOTA:

(1) Luciana, Margareth, Karenina e Lila são minhas colegas no curso de Redação do Professor Gilson Rampazzo.