Conluio

Catharina abriu sua bolsa, tirou os óculos que usava para ler e os colocou cuidadosamente na caixa apropriada, guardou tudo na bolsa; tirou a carteira e retirou uma nota que colocaria na urna do “Pão dos Pobres”. Guardou a carteira e fechou a bolsa. Ao fazer o sinal da cruz e antes de se levantar olhou para a imagem de Santo Antonio, padroeiro da igreja que freqüentava num bairro da periferia de sua cidade natal, um princípio de sorriso iluminou seu rosto.

Catharina é uma ex-professora de filosofia, com sólida formação intelectual, fala várias línguas, lecionou para o 2º grau antes de se casar, depois, na cidade grande lecionou na Faculdade onde havia se formado e posteriormente obteve o grau de mestre em ciências.
Pessoa discreta se veste com muita classe, sempre sem espalhafato, é uma senhora que suas netas consideram muito “chique”. Mas, o que mais caracteriza Catharina é sua inabalável fé. Catharina realmente acredita na Divina Providencia e faz desta crença uma condição natural de sua vida. Seus valores, sua luta por maior igualdade social, sua atuação profissional são todos secundários, pois derivam de sua crença em Deus, e na Igreja que fundou. Obedece a todos os preceitos litúrgicos com alegria; a missa aos domingos é fundamental. Seu maior desejo é que Paulo seu companheiro, gosta de chamá-lo de seu cúmplice, fosse mais “praticante” como se diz na gíria católica.

Paulo vestiu a camisa nova que havia encomendado na Camisaria Pedroso, que lhe havia sido apresentada por seu padrasto há mais de 50 anos atrás. A Camisaria dirigida agora pelas filhas do Sr. Pedroso que a fundara, no Largo da Floricultura, mantinha a mesma qualidade e o mesmo atendimento especial para seus clientes. Paulo havia sido ousado e encomendou uma camisa de tecido quadriculado, com quadriculas minúsculas, em vermelho. Achou que ia ficar mais jovem. Não abriu mão dos punhos duplos para usar com abotoaduras, e pediu, como sempre, suas iniciais bordadas no bolso. Havia recebido outras duas camisas, brancas, feitas com linho italiano e que haviam sido encomendadas por sua esposa, Catharina. O linho era remanescente de seu enxoval e estavam guardadas para alguma finalidade que ninguém mais lembrava o que era e Catharina achou melhor mandar fazer duas camisas. Era tão raro Paulo cuidar de sua roupa, ou em geral cuidar de si. Resolveu aproveitar a ocasião. Paulo tinha um par de abotoaduras de ouro, com suas iniciais, que havia recebido quando completou 18 anos e visitava seu pai, no exterior, com fazia todas as férias de fim de ano. Na ocasião já havia concluído o primeiro ano de seu curso de Engenharia Civil. Isto era motivo de muito orgulho para ele e mais ainda para seu pai. As abotoaduras lhe lembravam o pai, e era uma das poucas coisas que conseguira guardar desde sua juventude. Paulo é muito relaxado, perde tudo, não se lembra onde guardou algo, e certamente não prima em matéria de vestimenta. Para garantir que não perderia as abotoaduras, colocou-as no bolso de uma das camisas brancas. Por isso ficou chocado quando procurou nos bolsos e não achou o par, procurou na camisa quadriculada e, nada. Procurou em bolsos de paletós, de calças, em vão. Ficou muito triste. Sem alternativa apanhou um outro par de abotoaduras, bonitas também, mas sem o mesmo significado sentimental. Saiu de casa e foi para uma celebração de 10 anos de uma empresa de amigos com quem havia mantido relacionamento profissional. Sabia que ia encontrar com Catharina que vinha de uma consulta médica. Tocou no assunto ligeiramente. Olha, não achei meu par de abotoaduras de ouro. Você sabe onde guardou. Sei, sim. Estou me vendo pondo no bolso de uma das camisas que você me deu. Vai ver você pôs em outro lugar. Daqui a pouco você acha.

Semanas depois, ao vestir uma das camisas brancas, para ir a outra recepção, lembrou das ditas cujas. Procurou de novo, agora em sua casa de campo, nada. Falou com a senhora do caseiro, nada. Mencionou dias depois em seu escritório na vã esperança que alguém exclamasse – Paulo você me contou que guardou no cofre, na pasta de mão, na puta que pariu, queria achar as abotoaduras!

Paulo está muito feliz com o andamento dos negócios familiares. Seus filhos haviam conseguido dividir as funções de uma maneira que não entrassem em choque a toda hora. Os negócios progrediam bem e ele, apesar de reconhecer as dificuldades, conseguia deixar que executassem suas antigas funções sem se meter (demais). Estava pensando no que fazer, agora que estava bem mais folgado. Viajar é claro, era prioritário. Queria também escrever. Quem sabe um livro autobiográfico. Pensava em dedicar algum tempo para melhorar as condições de vida dos bairros mais pobres. Paulo é como diria seu sogro, temente a Deus. Crê. Ao contrário de Catharina não lhe apetece o cumprimento da liturgia. Estudou religião quando interno durante o 1º grau e guardou o entendimento de que há questões de fé e questões de disciplina. Guardava as questões de fé e discordava da maioria das imposições disciplinares. Diz sempre a Catharina que a religião dele é mais horizontal do que a dela. Preocupa-se mais com o próximo, não que ela não o faça, mas para ela o espiritual é mais importante. Se algo o incomoda no momento é a porra do par de abotoaduras que não queria ter perdido.

Pô Catharina, você podia falar com seus amigos lá de cima e fazer minhas abotoaduras aparecerem. Você é que é teimoso. Faça uma promessa para Santo Antonio que ele vai te ajudar. Eu! Fazer promessa para Santo Antonio? É. Você se preocupa tanto com os outros por que não promete doar algo substantivo para o “Pão dos Pobres”. O “Pão dos Pobres”? Puxa isto parece interessante. Você acha que vai funcionar? Claro. Como é que eu faço? Prometa fazer uma contribuição generosa. Só isso? Quanto seria generoso? Algo mais do que uma centena de reais. Paulo vai para o escritório pensando no assunto. Não vou precisar fazer novena… não vou precisar ir domingo à igreja…só prometer fazer uma contribuição. Mas, isto eu vivo fazendo sem falar para ninguém. Sai do carro, tranca a porta com o comando eletrônico, e meio solene diz a Santo Antonio, olhando para o céu, que fará uma contribuição de tantas centenas de reais. Neste momento lembra-se de Lisboa, da visita que fizeram à casa onde Santo Antonio nasceu e sente por dentro que vai achar as abotoaduras. Não conta nada para ninguém.

Catharina e Paulo combinam uma semana de folga. Desde que voltaram de Israel em outubro passado não saíram nenhum dia. Com o fim de fevereiro quer aproveitar um pouco de praia. Catharina topou na hora. Começam a arrumar as malas e Catharina se aproxima e diz com um tom de que vai falar coisa séria e importante. Paulo tenho que te contar algo e quero que você me desculpe. Ao começar arrumar minhas coisas eu abri aquela bolsinha onde guardo ferramentas que alguém pode precisar. Sabe qual é? Não. Aquela onde tem chave de fenda para parafuso de óculos, minicanivete multiuso, tesourinha para cutículas. Sei e aí? Pois é. Eu não lembrava mais, mas para garantir que você não perdesse as abotoaduras, eu tirei do bolso da camisa onde você guardou e guardei lá. Juro que eu não lembrava mais. Sabe como é, a idade! E tendo dito isto entregou a Paulo as duas abotoaduras de ouro. Paulo, sem acreditar, ficou de olhos marejados, abraçou a mulher, beijou-a com vigor e apertou as abotoaduras com força.

Catharina abriu sua bolsa, tirou os óculos que usava para ler e os colocou cuidadosamente na caixa apropriada, guardou tudo na bolsa; tirou a carteira e retirou uma nota que colocaria na urna do “Pão dos Pobres”. Guardou a carteira e fechou a bolsa. Ao fazer o sinal da cruz e antes de se levantar olhou para a imagem de Santo Antonio, padroeiro da igreja que freqüentava num bairro da periferia de sua cidade natal, um princípio de sorriso iluminou seu rosto. Ao sair do banco, olhou de novo para Santo Antonio, agora com um sorriso amplo que demonstrava toda sua alegria. Nem se espantou quando Santo Antonio retribuiu seu sorriso com uma piscada cúmplice!

Escrito em 11/02/2011 às 18h14min.